sexta-feira, 25 de junho de 2010

Sugar Ray Charles

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Carlos era burguês. Orgulhosamente burguês.

Ao entrar em sua casa, qualquer um logo se deparava com um par de vasos posicionados simetricamente, sustentando pares de xaxins de samambaias, carinhosamente tidas como originais pelo dono. Aaahh, nada como o verde! A natureza em seu mais primitivo e inofensivo estado. A querida mãe natureza. A flora. O ecossistema, tão ameaçado naqueles dias.

Mas a impressão de estar num ambiente asséptico e impoluto afligia o visitante antes mesmo que se cerrasse a porta de mogno do elevador do condomínio Buckingham Park Hills. Aparentemente, a sensação vinha de baixo. Subia do chão, emanava andar por andar. Ou será que nascia ali mesmo no décimo primeiro? Enfim, qualquer reflexão era prontamente interrompida, já que hmmmm.... Carlos usava Gleid. Maravilhoso cheirinho de lavanda que brindava as narinas, trazendo um ar camponês ao lar. Coisa de outro mundo!

Na porta - era outubro -, via-se uma guirlanda natalina em forma de bota ou meia (não estava bem claro). "É de boas vindas ao bom velhinho", dizia o anfitrião, satisfeito enquanto fitava fixamente o adorno rubro-verde. No chão, um capacho saudava: Wilkommen. "Acho que é 'bom dia' em holandês". Um olho mágico meio que intrigava quem chegava àquele hall, ajudado por uma luz que se acendia automaticamente. Funcionava por sensor. Tempos de economia. Fundamental, pensava Carlos.

Após finalmente entrar, avistava-se um lavabo. Coisa simples, pequena, e enfeitada por revistas de interesses gerais, dessas de recepção de dentista. Com o consentimento das persianas, as paredes, alvas como nuvens, e o assoalho quase intacto brilhavam intensamente, bronzeados pelo reflexo do sol. O home theater que Carlos não usava desde julho estava lá, discretamente coberto por um ou dois dedos de pó. "Tá com problema", dizia o dono, talvez para disfarçar seu desinteresse pela recente aquisição.

Eis que entravam em cena duas figuras que provavam, de uma vez por todas, o quão ímpar e singular era Carlos. Quiçá, a psicanálise se encarregasse de explicar a imponência que aquele par de bichanos - batizados de Merlin e Oz - acrescentava à personalidade d'uma pessoa de bem como ele. Pois não eram cães, eram gatos! Eram felinos e, como tais, eram imprevisíveis. Eram blasé. Eram, enfim, presentes de Dionísio em terra de Apolo. Por dentro, Carlos sentia-se melhor que Arnaldo, amigo do andar de cima, que gabava-se, pobrezinho, de ter dois poodles.

Na mesinha da sala, três livros espessos e novos. Em um deles, era possível ver o autor: Dan Brown. Na coleção de cd's, clássicos: Bee Gees, Lighthouse Family, Simply Red. E também um básico que não poderia faltar: Anna e Jorge. Na estante de dvd's, o xodó de Carlos: Divas Reunion - Live 99'.

Ainda ali, na mesinha, um cartão de crédito. Sobre ele, um estranho juntado de pó ou grão branco, parecido com açúcar, que dava a entender que nem tudo andava em seu devido lugar por ali.

Texto publicado no meu antigo blog, em 26/08/2008.

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