sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Uma caixa de chicletes

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Sempre defendi a ideia de que o futebol brasileiro está repleto de técnicos, mas que tem poucos treinadores. Um técnico escala, monta a equipe e enxerga a coisa apenas como um todo. Um treinador, ao contrário, é detalhista. Observador, ele se preocupa com as minúcias, os pormenores, o indivíduo. Chama o jogador pra conversa ao pé do ouvido e o principal: o faz evoluir. A grosso modo, um bom treinador tira o máximo de cada peça da sua engrenagem.

Sim, porque me soa absurda a ideia que ronda o enfadonho cotidiano atual do futebol, de que um jogador só deve ser lapidado nas categorias de base. Aos 18 anos, ele deve estar pronto para competir com um veterano de 28 e automaticamente para de se desenvolver. Os treinos hoje em dia, pelo que se vê, são para bater cartão e tirar fotos felizes jogando ovo com farinha no aniversário dos companheiros. A evolução dos jogadores a partir dessa altura da carreira (do ato de se profissionalizarem) se dá muito mais pela experiência adquirida nos jogos do que pelo treinamento nos atributos em que é deficiente. E deveria ser pelos dois. Quem nunca teve vontade de ensinar o Adriano a chutar de perna direita, por exemplo?

Vendo o São Paulo 2010 jogar seu futebol paupérrimo e descompromissado, me lembrei da clássica história do maior treinador que o Brasil já teve. Telê Santana, ao comandar o mesmo São Paulo no início da década de 90, ficou conhecido pela atenção quase obsessiva que dispensava a cada atleta. (Quase) Ensinou Cafu a cruzar, fez Macedo deixar de ser um mero velocista, despertou a inteligência de Muller, obrigou Raí a chegar na área para concluir as jogadas... Seu legado não foi pequeno. E os resultados subsequentes também não.



E minha imaginação foi além. Vendo Marcelinho Paraíba recuar uma bola de peito na defesa e originar o gol de empate do Once Caldas, pensei: 'E se Telê fosse o técnico deste São Paulo?'. Convido, pois, o leitor a fazer esse divertido exercício lúdico e acompanhar meu tortuoso raciocínio.

1) O time jogaria num 4-4-2 clássico, e em torno de Hernanes. Telê faria do talentoso meia pernambucano seu novo Raí. O faria jogar definitivamente como meia, não como volante. E o principal: o forçaria a ir à área para concluir as jogadas, não sendo mais um reles assistente. Isso, óbvio, só se consegue com treinamentos específicos e muita insistência. Mais ou menos como Muricy tentou - e conseguiu - fazer com Lenílson, em 2006. E para os que eventualmente torcerem o nariz para essa comparação, uma lembrança: Lenílson foi o artilheiro da campanha do tetracampeonato brasileiro sãopaulino naquele ano, com 8 importantes gols e boas atuações. E marcou na final da Libertadores também.


2) Formaria sua dupla de volantes com Jean e Rodrigo Souto. Apesar de Telê ter, em elencos não tão fartos, escalado jogadores menos talentosos (Doriva, Pintado e Dinho, por exemplo), é claro que, por seu histórico, o mineiro de Itabirito não abriria mão de ter uma dupla que soubesse marcar e sair para o jogo com segurança, com passes inteligentes. E é bom ressaltar que ambos preservam em seu DNA uma característica que Telê prezava: não terem o vício de fazer faltas. Até por isso, o São Paulo levou o segundo gol dos colombianos. Jean não cometeu o anti-jogo e (será?) Telê aplaudiu.

3) E Richarlyson? Bom, esse certamente, passaria pelo menos 3 meses se reciclando com o exigente treinador antes de voltar a campo. Passes, cruzamentos, chutes de longa distância, lançamentos, viradas de jogo, enfim, não seriam poucos os fundamentos a serem corrigidos no obstinado volante sãopaulino. A primeira coisa que Telê diria a ele seria: "Não inventa, meu filho. Se você não sabe, não faz. Futebol é simples".

4) No ataque, dificilmente Washington teria vez. Muitos lembrarão da Seleção de 82 e dirão 'Serginho Chulapa jogou com Telê', se esquecendo que o titular do time seria o contundido Careca. E, claro, não há como comparar Chulapa - o maior artilheiro da história do próprio São Paulo - com Washington, que é apenas um centroavante muito competente, mas em cujos pés as tramas rasteiras costumam simplesmente morrer. Seu repertório de jogadas - para usar um termo da moda - é curto demais para o bico de Telê.

5) Henrique seria lapidado para ser o camisa 9 tricolor. O garoto, hoje, já reúne características peculiares: oportunismo, ótima finalização, domínio de bola e velocidade. O que lhe falta para ser letal? Saber jogar de primeira, como Telê fez com Muller, outrora apenas um bom velocista. E alguém que realmente acredite em seu futebol. Telê acreditaria e a torcida apoiaria o fedelho.

6) Dagoberto seria trabalhado para ser o novo Palhinha. Telê o chamaria de canto e diria: "Você não é mais garoto. Quer acontecer ou ser só mais um?". Em outras palavras, deixaria o camisa 25 encucado. Faria o que sempre fez muito bem: deixar o próprio jogador se cobrar. E pode apostar que o paranaense ficaria até de noite treinando finalizações no CCT da Barra Funda.

7) Cicinho e Junior Cesar seriam obrigados a aprender a marcar. E não seria tão difícil. Preparo físico bom e um posicionamento para encurtar os espaços para o atacante bastariam. Hoje em dia, sabe-se lá porque, dá-se muito espaço para o adversário cruzar. Parece que os marcadores ficam à distância sempre esperando o drible, que não vem. Erro primário e fácil de ser corrigido. Com broncas e ranhetice.

8) Telê gostava de jogar em velocidade. Rogério seria mais útil do que é hoje em dia. Teria também a função de armar contra-ataques velozes com seus lançamentos, como fazia com Levir Culpi, em 2000. Para tanto, teria que ignorar as dores e aumentar a carga de treinos com a equipe nesse fundamento. Será?



9) Miranda e Alex Silva comporiam a zaga. Até aí, nenhum segredo. Mas ai do Pirulito se fizer uma gracinha e entregar um gol. André Luís estaria ali, no aquecimento, esfregando as mãos, pronto para ser o Ronaldão do novo milênio. Miranda, sempre sóbrio e sério, não deveria passar por apuros. E algo me diz que Xandão, que mostrou potencial nesse início de ano, ganharia o status de xodó de Telê.

10) Na meia-cancha, para atuar ao lado de Hernanes, Marcelinho Paraíba seria o escolhido. Canhoto, experiente, bom finalizador e bom lançador. O que lhe falta, então? Segurança. Marcelinho não sabe se é meia ou atacante. Com Telê, seria meia. Fundamentalmente, armaria o jogo, como fez Leonardo no Mundial de 93. E, principalmente, tem faltado a Marcelinho movimentação do resto do time. Não é raro ver o meia paraibano dominar a bola, olhar, olhar e... nada.

Mãos na cintura nunca fizeram o estilo de Telê. Times omissos, que não tivessem gosto pelo bom futebol, que não soubessem dominar o meio-campo, também não. Pois futebol, digam o que disserem, se ganha ali, na meia-cancha. Os times de Telê mostraram isso. Os de Rinus Michels também. Inversões de jogada, laterais que subiam ao mesmo tempo, correr riscos, enfim. Tudo isso faz parte do trabalho de quem é alérgico a 0x0.

O que não faz é ver o sempre disposto Jorge Wagner cobrando laterais para os meias disputarem de cabeça. Faz sentido isso? Ou ver o ótimo - porém deslumbrado - Cleber Santana jogar sem fibra, caminhando pelo meio-campo como se estivesse no Central Park numa tarde dominical. Ver Hernanes pegar a bola, esperar, olhar para a direita, olhar para o relógio, coçar a cabeça, pensar nas manchetes do dia, na capa da Playboy do mês, em dois versículos bíblicos, roer as unhas e não ter a companhia do inexplicavelmente tímido Cicinho pelo flanco destro.



Do jeito que caminha hoje, o time do Morumbi vai sem lenço e sem documento, na banguela, achando - cheio de empáfia - que vai conquistar mais uma Libertadores. E, dessa forma, não vai. Mesmo que possua um elenco superior ao dos títulos de 92, 93 e 2005. O papel não entra em campo. É preciso liderança, ascendência sobre o grupo para fazer o nível das atuações mudar. Quem sabe se presentearem Ricardo Gomes com uma caixa de chicletes, como os que o velho Telê mascava.