sexta-feira, 25 de junho de 2010

Sugar Ray Charles

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Carlos era burguês. Orgulhosamente burguês.

Ao entrar em sua casa, qualquer um logo se deparava com um par de vasos posicionados simetricamente, sustentando pares de xaxins de samambaias, carinhosamente tidas como originais pelo dono. Aaahh, nada como o verde! A natureza em seu mais primitivo e inofensivo estado. A querida mãe natureza. A flora. O ecossistema, tão ameaçado naqueles dias.

Mas a impressão de estar num ambiente asséptico e impoluto afligia o visitante antes mesmo que se cerrasse a porta de mogno do elevador do condomínio Buckingham Park Hills. Aparentemente, a sensação vinha de baixo. Subia do chão, emanava andar por andar. Ou será que nascia ali mesmo no décimo primeiro? Enfim, qualquer reflexão era prontamente interrompida, já que hmmmm.... Carlos usava Gleid. Maravilhoso cheirinho de lavanda que brindava as narinas, trazendo um ar camponês ao lar. Coisa de outro mundo!

Na porta - era outubro -, via-se uma guirlanda natalina em forma de bota ou meia (não estava bem claro). "É de boas vindas ao bom velhinho", dizia o anfitrião, satisfeito enquanto fitava fixamente o adorno rubro-verde. No chão, um capacho saudava: Wilkommen. "Acho que é 'bom dia' em holandês". Um olho mágico meio que intrigava quem chegava àquele hall, ajudado por uma luz que se acendia automaticamente. Funcionava por sensor. Tempos de economia. Fundamental, pensava Carlos.

Após finalmente entrar, avistava-se um lavabo. Coisa simples, pequena, e enfeitada por revistas de interesses gerais, dessas de recepção de dentista. Com o consentimento das persianas, as paredes, alvas como nuvens, e o assoalho quase intacto brilhavam intensamente, bronzeados pelo reflexo do sol. O home theater que Carlos não usava desde julho estava lá, discretamente coberto por um ou dois dedos de pó. "Tá com problema", dizia o dono, talvez para disfarçar seu desinteresse pela recente aquisição.

Eis que entravam em cena duas figuras que provavam, de uma vez por todas, o quão ímpar e singular era Carlos. Quiçá, a psicanálise se encarregasse de explicar a imponência que aquele par de bichanos - batizados de Merlin e Oz - acrescentava à personalidade d'uma pessoa de bem como ele. Pois não eram cães, eram gatos! Eram felinos e, como tais, eram imprevisíveis. Eram blasé. Eram, enfim, presentes de Dionísio em terra de Apolo. Por dentro, Carlos sentia-se melhor que Arnaldo, amigo do andar de cima, que gabava-se, pobrezinho, de ter dois poodles.

Na mesinha da sala, três livros espessos e novos. Em um deles, era possível ver o autor: Dan Brown. Na coleção de cd's, clássicos: Bee Gees, Lighthouse Family, Simply Red. E também um básico que não poderia faltar: Anna e Jorge. Na estante de dvd's, o xodó de Carlos: Divas Reunion - Live 99'.

Ainda ali, na mesinha, um cartão de crédito. Sobre ele, um estranho juntado de pó ou grão branco, parecido com açúcar, que dava a entender que nem tudo andava em seu devido lugar por ali.

Texto publicado no meu antigo blog, em 26/08/2008.

A Copa da minha vida

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Os críticos têm mania de dizer que a Copa de 94 foi feia. E eu teimo em dizer que não. Que, entre todas que eu vi, foi a melhor. Quem sabe por ter sido a primeira. Quiçá por eu ter 6 anos na época e sair mais cedo da aula pra ver os jogos da Seleção, com toda minha família reunida aqui em casa. Me sentia tão malandro por isso...

Ótima lembrança dos tempos em que eu ainda torcia pra Seleção. Me lembro do álbum que meu primo Danilo tinha e completou. Eu o estudava minuciosamente, noites a fio. Queria saber tudo sobre todo mundo.

Como esquecer do figurante Bum Chul-Sin, goleiro reserva da Coreia?

E do Julio Salinas, centroavante da Espanha, que tinha muito mais nome do que futebol?

E aquele golaço inesquecível do Al-Owairan contra a Bélgica. E logo em cima do Preud'Homme, um dos maiores goleiros que eu vi jogar.

A cotovelada do Tassotti que quebrou o nariz do Luis Enrique nas quartas-de-final, que fez aquela disputa ser ainda mais épica, com uma pitada de maniqueísmo.




A falha grotesca do Pagliuca, que tava adiantado, na estréia - com derrota, pra variar - da Itália, contra a poderosíssima Irlanda, do bigodudo John Aldridge.

E o fiasco que foi a Colômbia, de quem tanto esperavam? O time tinha Asprilla, Rincón, Valderrama, Valencia, Aristizabal - na época, um reserva de luxo - e era tido como a grande promessa da Copa, já que tinha metido 5x0 na Argentina em pleno Monumental de Nuñez, em 93. Terminou a competição e teve o zagueiro Escobar assassinado, depois do gol contra que fez, a favor dos Estados Unidos. Falando em Colômbia, não dá pra esquecer daquele golaço do Hagi em cima do Cordoba, que se posicionou mal demais. Levou até 2000 pra eu me convencer que, apesar da péssima Copa que fez, ele era um bom goleiro.

Nunca tiro da cabeça aquele grande time da Romênia que tinha Petrescu, Dumitrescu, Lacatus, Radoucioiu, Prunea, Prodan, Popescu e, claro, o craque Hagi. Jogavam fácil. Acho que foi com eles que aprendi o que era contra-ataque.

Teve também a Nigéria, que tanto me encantou com o monstro Okocha, com Daniel Amokachi, Emmanuel Amunike. Um futebol lindo e imprevisível, jogado sem medo. Não importa o resultado, não importa o que digam... aquilo era arte. Teve aquela cena, a mais bela de todas as Copas pra mim: o Yekini, trajado daquele uniforme que parecia um pijama, chorando agarrado às redes, depois de marcar contra a Bulgária o primeiro gol da história da Nigéria nas Copas.



Não esqueço também dos EUA, que jogavam um futebolzinho chocho, mas davam trabalho e eram treinados pelo milagreiro Bora Milutinovic. Diziam que o craque do time era o Eric Wynalda, um atacante mais ou menos do nível do Maxi Biancucci, que cobrava faltas bem. Lembro que o Harkes, capitão do time, levou um amarelo por ficar saltitando enquanto tava na barreira. Certamente, um dos cartões mais inexplicáveis e bisonhos da história do futebol. Lá atrás, tinha o Toni Meola, um goleiro com cara de ator do Barrados no Baile, com aquele rabinho de cavalo do naipe do Steven Seagal. O time tinha uma boa dupla de zaga, é bem verdade: Alexi Lalas - e sua inconfundível barba ruiva - e Marcelo Balboa, que quase fez um gol antológico de bicicleta. Tinha também o Cobi Jones, que chamava mais atenção por causa dos dreads do que pelo futebol e chegou até a jogar no Vasco, em 95.

Dreads que o grande Henrik Larsson também ostentava na época. E que lhe renderam o belo apelido de Larissa, pelo meu primo Dudu. E olha que ele era reserva naquele time da Suécia, que foi 3º colocado. O time tinha o folião Ravelli no gol, o gordinho e excelente Brolin na meia, o gigante Kenneth Andersson e o Thomas Dahlin (clone do O.J. Simpson, que tava em voga na época), lá na frente. Esse último era considerado o craque do time, mas não jogava tudo isso. Aliás, nada disso.

Tinha também a Bulgária do cracaço Stoichkov, do insinuante baixinho Kiriakov (que sempre entrava bem nos jogos), do grande meia Balakov, com seus cachinhos, e do excelente segundo volante - que era quase um meia - carequinha Letchkov. Tinha também o goleirão Mihailov, que tinha sérios problemas com a calvice. E, entre aumentativos e diminutivos, ele. O zagueiro-lobisomem. O jogador mais feio que eu já vi na vida. O grande e temível Trifon Ivanov.



Na Suíça, lembro do atacante Chapuisat, que era ídolo do Borussia Dortmund e do camisa 7, Alain Sutter, um loirinho cabeludo, considerado o craque do time. Tinha um atacante ligeiro também, chamado Knup, mas no geral, o time era bem medíocre.

E na Rússia, como esquecer da dupla de ataque que trucidou Camarões? Oleg Salenko (autor de cinco gols só naquele jogo) e Dimitri Radchenko. E pensar que o Salenko só foi virar titular no último jogo, quando a vaca já tinha ido pro brejo...

Camarões do Highlander Roger Milla, de seu parceiro Omam-Biyik e do goleiro Joseph Bell, que deixou o lendário Jacques Songo'o e William Andem no banco. Sim, William Andem é aquele arqueiro de qualidade questionável que passou por Cruzeiro e Bahia e que levou um gol detrás do meio-campo do Dutra, lateral-esquerdo hoje no Sport e na época, em 97, no Santos. Me lembro também, claro, do zagueirão Rigobert Song, que já naquela época aprontava das suas peripécias.



E a Bolívia do goleirão Carlos Trucco, do lateral Cristaldo, dos meias Erwin "Platini" Sanchez, Baldivieso - que já fez um gol do meio da rua no Marcos - e, claro, de Marco Etcheverry? El Diablo era apontado como um fenômeno e foi expulso logo na estréia diante da Alemanha. Gol polêmico do craque Klinsmann, eu lembro. Todo mundo pediu impedimento, mas não foi. Aliás, foi ali que eu aprendi o que era o tal do impedimento.

A Alemanha era a atual campeã e tinha Illgner no gol, Völler e Klinsmann na frente, Brehme na lateral, Matthäus de líbero, Kohler e Helmer na zaga, Möller na meia... mas eu lembro mesmo é do limitado Guido Buchwald. E do dedo do meio do Effenberg pra torcida, quando foi substituído contra a Coreia.

E aquela cotovelada sinistra do Leonardo no Tab Ramos, hein? Mó burrice. Foi no dia 4 de julho de 1994. Eis que o Romário achou o Bebeto, que chutou fraquinho, no único espaço que tinha. A bola entrou mansa no gol do Meola e derrubou a garrafinha d'água antes de morrer na rede. Na comemoração, eu lembro dele olhando pro Romário e falando "eu te amo!".



E nas quartas-de-final, quando o Brasil cruzou com a Holanda do Ice-Man Dennis Bergkamp e do Overmars, que tava surgindo com tudo? O melhor jogo da Copa, talvez. Começou fácil e terminou um sufoco. Malandragem do Branco, cavando aquela falta. E o Baixinho desviando as costas da bola? A classificação do Brasil passou por milímetros ali. Foi nesse jogo também que surgiu aquela comemoração do Bebeto, em homenagem ao filho dele. Matheus, se não me engano, era o nome do rebento. Já nasceu famoso.



E a Argentina, que era favorita, desapontou, como fez em 2002. Isso com Redondo (provavelmente o maior volante que já vi) no time. Acompanhado de Batistuta, Cannigia, Simeone, Ortega e Ruggeri. Tinha também o zagueiro carequinha do Boca Juniors, Mac Callister. Isso lá é nome de argentino? Eu, inocente como era, não entendi nada quando apareceu uma mulher de branco levando o Maradona pelo braço, no meio do jogo.

Ah... teve também aquele histórico beijinho do Pagliuca na trave, depois do chute do Mauro Silva na final. Ele ia levar mais um frangaço.

Pô... depois de lembrar de tudo isso, ainda tem gente que quer me convencer que essa Copa foi ruim? Sem chance.

Texto publicado no meu antigo blog, no sugestivo dia 08/08/2008.

O mais próximo do fascismo que o futebol moderno chegou

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No post anterior, fiz questão de ignorar o ridículo Campeonato Paulista de Futebol Feminino de 2001.

O certame transmitido pela RedeTV!, ficou conhecido por usar a beleza - um conceito, até onde sei, subjetivo - das atletas como "critério de desempate" no draft realizado antes do torneio.

Segundo o eterno Eduardo José Farah, presidente da FPF naquele e em muitos outros anos, a iniciativa tinha a intenção de "dar uma nova roupagem ao futebol feminino", que andava "muito reprimido pelo machismo". O brilhante critério foi criado pela competentíssima Pelé Sports & Marketing e prontamente avalizado pelo vice da Federação, Renato Duprat - de quem os corinthianos e santistas guardam lindas lembranças.

Caso estivesse interessada, Sissi - a maior jogadora da época - não poderia jogar o torneio, já que o regulamento proibia a presença de atletas com a cabeça raspada. Além disso, previa que as jogadoras usassem maquiagem e uniformes justos. Tudo isso, claro, para afastar o futebol feminino do machismo. Regulamento criado, diga-se de passagem, só por homens.



E eu fico a imaginar:

Quem sabe a empresa de Pelé não tenha se inspirado nas medidas ultra-autoritárias de outro cidadão de quem a massa corinthiana morre de saudades: Daniel Passarella.

O técnico da Argentina em 98 deixou de levar Fernando Redondo à Copa só por ter cabelos compridos. E só não deixou o artilheiro Batistuta de lado porque este aceitou tosar suas prezadas madeixas.



O interessante é notar que tanto a Argentina quadrifinalista na Copa da França, quanto o Campeonato Paulista Feminino de 2001 não vingaram.

E o esporte bretão agradeceu.

Texto publicado no meu antigo blog, no dia 11/08/2008.

Yankee?

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Me lanço no blackjack depois de umas Cubas Libres, amigo.
Vou fundo e, fuck, meus dólares acabaram! Whatever, manda mais um drink, bartender. Um whisky, tá? Preciso deletar esse fracasso urgente. Now!

Como diabos faço pra sair desse pub? Bom, deixa eu pensar... Esse host tem cara de babaca. Manja, uns maluco meio dumb-ass, meio redneck, desses que você não bota fé? Bem loser mesmo. Mas tá conversando com um tira. E tem ainda um fortão no staff. Aí fode.

Vou ao W.C. espairecer, fumar um Marlboro. Saio com uns pingos no jeans e uma stripper com lábios gordurosos de gloss me pergunta se eu tenho algum motivo pra andar descalço por aí. Oh, Jesus, esqueci meu tênis lá dentro! Dou exatos doze passos, no tic-tac de meu Swatch, abro a portinha estilo Saloon e avisto meu belo par de Nike. Querido par de Nike! Lindo. Branco. Grande. Clean. Um design meio vintage, fashion pra caralho hoje em dia. Lembra o do Air Jordan. Fresquinho, direto do shopping. Não gosto de contar, mas tava 40% off. Não tinha como não aproveitar.

Mas goddammit, o que isso importa agora? Eu tenho que pensar em como sair daqui. Volto lá e uma tal de Kelly me pergunta se eu gosto de hip-hop. Minto e digo que curto os hits desses caras mais popstars, tipo Eminem e 50 Cent. Ela parece gostar, vai até o DJ e cochicha algo, parece que tava pedindo uma música. Do nada, eles começam a discutir e o clima na boate fica tenso. Ela chora. Eu vou consolá-la. Que bad, eu digo. Com o rosto ainda molhado, ela olha pros meus pés e diz algo que muito me anima. Uau, estaile esse seu tênis, hein? Era justo o que eu queria ouvir. Gostei da menina. Ela não parecia querer meu dinheiro. Além disso, era a típica moreninha mignon. Feia - parecia um jogador de rugby -, mas com pedigree, manja? Não curto aquelas mina com bafo de Close-Up e cara de lady. Enfim, essa Kelly tem sex-appeal. Então, embalado pelo rock'n roll do jukebox - o DJ, de tão puto, já tinha ido embora - como quem não quer nada, lanço: eu tenho uma cama king-size, sabe? Parece que é o password pro sucesso. Os olhos da mina brilham. E eu só pensando em como eu ia fazer pra sair dali.

Vou ao toalete de novo. Expulso o hot-dog que comi no almoço com raiva. Com direito a ketchup. Malditas hemorróidas. Ponho de novo a calça e, eureka!, penso num jeito de sair dali. É arriscado. Meio James Bond. Talvez um pouco mais covarde que isso. Enfim, o fato é que eu achei 5 pratas no bolso.

Volto, olho bem praquela pituzinha marota, com um shortinho sexy me esperando e me sinto em Hollywood. Só falta um smoking, uma arma e licença pra matar. Não... pensando bem, é meio Mc Gyver. Enfim, só sei que mal consigo fechar meu ziper de tão feliz que eu tô. Tem que dar certo.

Olho pro gigante do lado do host dorminhoco. Meio cochichando, chamo: Psiu... Ei, negão, vem cá. Eu sei que cê tá sem comer há um tempão, né? Tó - puxo o dinheiro amassado e rasgado como se fosse um cheque de banco suíço -, aqui tem cinco conto, come alguma coisa e fala que é por minha conta, beleza?

Essa porra desse negão sussurra, não responde direito. Definitivamente, um homem de poucas palavras. Mas acho que ele disse sim. Ele vai no balcão e pede um americano. Aproveito o deslize, pego a Kelly pela mão e me mando daquele lugar quase às moscas.

Entramos no meu Palio Weekend e ainda olho praquele neon vermelho e verde, com poucos watts sobrando, dizendo: "Sereia's Bar - Com Sauna", viro a esquina da Dr. Zuquim e vou-me embora.



Texto publicado no meu antigo blog, em 14/08/2008.

A letra virou número

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Há muito, um rouxinol me contou que o futebol virou negócio. E que é coisa para os românticos mais tolos admirar a estética, o esporte, a plasticidade, a arte, a imaginação... isso é besteira.

Qualquer manifestação de improviso, por mais tímida que seja, é logo enquadrada por doze ou treze microfones, um ou dois publicitários muito bem intencionados, uma Montblanc, dois ou três homens de fraque, um pedaço de papel e uma rúbrica humilde.

E é assim, com urubus coadjuvantes, que o circo todo é montado, sempre em torno do bobo-da-corte.

Em 2002, o Brasil assistiu o surgimento de um negrinho abusado das pernas finas. Seu nome: Robinho. As pedaladas eram sua marca registrada. A mesma que havia consagrado um outro garoto de esqueleto frágil seis anos antes: Denílson.

O destino que os aguardava? Europa, seleção canarinho, flashes e mais flashes, contratos, comerciais, chuteiras, eventos, silicone, promiscuidade, manchetes, carros do ano e sorrisos tão amarelos quanto o manto nacional. E assim, gentilmente, o original cedeu seu lugar ao clichê. O futebol-arte virou pop-art.

"Pra dentro deles, Denílson", diz o locutor ufanista. Aliás, dizia. Hoje em dia, o produto já passou da validade e mofa nas prateleiras do Parque Antarctica. O momento é de Robinho. Mas o tempo passa e logo será a vez de Pato. E assim gira a engrenagem, triste e previsível.

O ciclo é mais ou menos assim: na base, moleque que se preza tem que mostrar que é diferenciado. Tem que dar caneta, dar letra, fazer gol de placa. Enfim, tem de mostrar que ali tem coisa boa. Se der tudo certo, ótimo. Profissional... uma vez no topo, a letra dá lugar ao número. Seja ele um número circense, como é o caso de Robinho ou um punhado de estatísticas, como é o caso de Jorge Wagner. O certo é que todos eles, protagonistas e figurantes, estejam em frente ou atrás das câmeras, gostam mesmo é das cifras. E essas, afinal, não deixam de ser números.



Texto publicado no meu antigo blog, em 02/10/2008.


Diariamente 2

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Para curvar-se, Rei
Para roubar, castelo
Para correr, Nike
Para punir, Bope
Para matar, Nascimento
Para bater, Cocito
Para comer, Mc
Para ouvir, MC
Para entreter, VJ
Para dançar, DJ
Para falar, Halls
Para beijar, Trident
Para consumar, Audi
Para fotografar, idem
Para mentir, promessa
Para começar, asfalto
Para dar voz, rede
Para tirar, TV
Para aparecer, Rede TV!
Para esquecer, Bossa Nova
Para criticar, rap
Para tocar, jabá
Para desgostar, chefe
Para degustar, chef
Para enrijecer, Viagra
Para enriquecer, indústria
Para choramingar, novela
Para lacrimejar, cebola
Para azedar, vinagre
Para exportar, pés
Para pisar, terra
Para sambar, avenida
Para aprender, linha
Para sobreviver, confissão
Para consertar, academia
Para insistir, bisturi
Para desfilar, dieta
Para clicar, passarela
Para assombrar, notícia
Para versar, tecla
Para beber, Boa
Para devolver, marvada
Para esbanjar, cifra
Para lavar, ONG
Para brigar, pouco
Para morrer, menos
Para conservar, democrata
Para playboy, Caras
Para caras, Playboy

Texto publicado no meu antigo blog, no dia 26/8/2008

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O jornalismo precisa lembrar de 1922

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Após ler o ótimo texto do jornalista Leandro Fortes, que critica o show de descompromisso com a notícia em que se transformou o jornalismo esportivo atual, e tendo eu mesmo feito um guia da Copa do Mundo que usa e abusa de piadas marotas, pensei: "Essa carapuça quase me serviu. Mas, por sorte, ficou um pouco larga". Minha mão então começou a coçar e, incomodado, eu vim aqui pro meu blog - e último refúgio - escrever uma espécie de defesa, nem que seja apenas pra mim mesmo.

Não é segredo para ninguém que vivemos a era do entertainment. Minha geração, mais americanizada que todas as anteriores (pagando a conta da geração passada, movida a muita gente que tinha ereções quando ouvia falar do Walt Disney World e afins), é a grande responsável pela consolidação deste fenômeno nos meios de comunicação brasileiros. A onda made in USA atingiu até mesmo o outrora fleumático jornalismo, que não teve forças para reagir e se reinventar à brasileira. Hoje, vemos cada vez mais homens da mídia fazendo nas redações algo parecido com o que Robinho por alguns anos fez dentro de campo. Já ensinava um filho pródigo do Tio Sam, "there's no business like show business". Em se tratando da mídia esportiva, então, tudo - absolutamente tudo - é firula. É a estética pela estética. Naturalmente, isso resulta em um conteúdo raso e atrai a antipatia de muitos. E a esses, dou toda a razão: ora, nem tudo é para ser tratado com exclamações. E, convenhamos, os clichês repetidos diuturnamente por aí chegam ao ponto de machucar o cérebro de qualquer um com o mínimo de poder analítico.



O cerne da questão é que hoje, pensando de maneira pragmática, o jornalista tem três opções.

1 - Ir com a maré. Transformar definitivamente o jornalismo num espetáculo, ceder à superficialidade, plastificar seu sorriso e alienar seu público, tratando-o cada vez mais "como retardado mental", como descreve Leandro Fortes. Jogar no time que está ganhando, afinal, é sempre mais fácil. Especialmente quando o homem da mídia tem a seu favor o cada vez mais limitado discernimento de sua plateia. Aliás, é esse o triste quadro a que chegamos: ao assistir a um noticiário, você não é mais público, e sim plateia.

2 - Ir frontalmente contra a maré. Adotar uma corajosa postura de resistência, equivocadamente vista por muitos como 'conservadora' e privilegiar sempre o conteúdo em detrimento da forma, mesmo sob o risco de ser considerado sisudo, ranzinza e, a rigor, mais do mesmo. Essa corrente, em geral, é composta por membros que derivam do jornalismo escrito.

3 - Fazer um esforço hercúleo para agregar as qualidades mais importantes das duas correntes: a forma, na primeira, e o conteúdo, na segunda. É difícil, mas não impossível.

Um Guia Legal Pra Caramba tentou mostrar que a opção 3 é viável. Em momento algum, seus autores privilegiaram uma piada em lugar de uma informação, crítica ou notícia. Trata-se de bom senso. Da noção do que dizer, quando dizer, como dizer. Apesar de ser redundante falar, nem sempre é isso que vemos nas publicações/transmissões por aí.

Felizmente, o futebol - e aí eu discordo de Leandro Fortes - não se tornou apenas "um negócio de bilhões de reais". Como isso ainda não aconteceu, esse esporte nos permite aguçar o lado lúdico do ser humano, que vai muito além de um evasivo patriotismo quadrienal, e é terreno fértil para brincadeiras, piadas, críticas etc. O problema é que chegamos a um ponto em que dizer isso - e dessa forma - soa tolo. Inocente. Piegas. Melancólico. Patético. Até manipulador.

Qual, afinal, é a melhor forma de se enxergar esses novos ventos que sopram na mídia?

Bem, considerando todas as já citadas peculiaridades do esporte (que o distinguem da política, da economia etc.) a própria língua portuguesa oferece inúmeras possibilidades aos profissionais mais dispostos a quebrar paradigmas. Que tal começar por trocar figuras de linguagens consagradas, como as hipérboles ufanistas, por outras muito menos exploradas, como as ironias questionadoras? O futebol já deu incontáveis demonstrações de ser um fenômeno sui generis e, por si só, ter força para servir como metáfora para reflexão sobre as diversas outras áreas da vida. Basta apenas que não seja visto com a frieza de quem o reduz a cifras nem com a afobação de quem só pensa em transformá-lo num espetáculo enlatado.

É um enorme desafio, sem dúvidas. Mas a Antropofagia de Oswald Andrade nos mostrou que, sim, é possível agregar aquilo que há de bom na cultura alheia. Incorporar, fagocitar e enriquecer (no mais amplo dos sentidos, óbvio) me parece um melhor caminho que simplesmente rejeitar. É árduo o caminho, mas eu e o co-autor do Guia, Lucas Prata, estamos aí pra colocar abaixo o castelo de areia e tentar, até acertar.