sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Meia hora para o fim do mundo

Quando pequeno, Norberto era apenas um gordinho de poucas palavras, dono de uma coordenação motora lamentável com as mãos e pensamentos fervilhantes (dentre os quais "Porquê a Xuxa é famosa se ela é ruim?", "Porquê eu não sou negro?" e "Prefiro Pepsi a Yakult" talvez se destacassem). Mudou de casa, de bairro e de colégio no Pré e, na nova escola, se viu em um território completamente hostil, como se fora um imigrante tendo que construir sua nova vida sozinho, desassistido pelo governo que antes lhe dava o mínimo para viver. Em 1994, o termo "bullying" ainda não circulava por aí e, mesmo que assim fosse, não era este o caso. Do que Norberto padecia era mesmo de timidez, misturada àquela dosezinha de crueldade inata das crianças, seu afã por demarcarem territórios invisíveis e imporem limites. Se você é um forasteiro, deve demonstrar duas vezes mais qualidades (sobre)humanas do que os outros para se encaixar - e eles não perderão nenhuma oportunidade de te relembrar que aquele não é o seu território. Mesmo que você seja apenas um moleque de cinco anos e físico roliço.

Pelo menos era assim que a banda tocava lá pelos lados do Morumbi naqueles dias de primórdios do Plano Real. Quer dizer: era assim que a banda tocava até a hora do recreio. Quando o sinal batia, um improvável fenômeno de reorganização da "pirâmide" acontecia no pátio do colégio e o futebol, essa maravilhosa dança dos deuses, exercia a mais crua justiça social. Era, certamente, um fenômeno digno de acurados estudos para qualquer sociólogo ou psicanalista. Era mágica, alguns diriam. Norberto lembrava dos velhos discos que seu pai ouvia, das palavras de Sá e Guarabyra, e percebia que, de fato, por 30 minutos diários, o sertão virava mar e o mar virava sertão. O ponto é que não havia absolutamente ninguém com uma reputação forte o suficiente para resistir ao escárnio geral de tomar um rolinho ou um chapeu humilhante. Frangos eram imperdoáveis e ninguém queria saber se o menino era ou não goleiro de origem. Ser ruim no futebol era ser ruim na vida, aquela era a lei. E não adiantava correr: se você não jogasse bola, era menos respeitado ainda, como um dalit na Índia.

Ocorre que os melhores jogadores da classe eram justamente os rebentos mais calados, os alvos prediletos das brincadeiras, das chacotas e da indiferença (com o perdão do paradoxo) alheias, os gauches a que Drummond se referia. Os quietos, os estranhos, os fracotes, os gordinhos... E, por outro lado, os líderes da zuera, promotores da discórdia e sua fiel bancada de seguidores eram todos, sem qualquer exceção, reles pernas-de-pau, meninos que no futuro, com muito esforço, anos de treinos, uma sorte dos diabos e um grande empresário, no máximo poderiam algum dia vestir a camisa 15 do Palmeiras e se tornarem aquele volante limitado que o Gilson Kleina lança aos 41 do segundo tempo para segurar o resultado. Por 30 minutos diários, os falastrões eram forçados a ser aquilo que mais odiavam ser: humanos. Tratava-se, pois, da meia hora dos oprimidos

Diante da absurda situação de insolvência política e afronta à moral e os bons costumes, os bullies - aqui tratados assim por mero recurso linguístico e uma dose de prazer do escritor - então se reuniram. Como recuperar a moral? Como parar de passar vergonha na frente das menininhas que eles amavam odiar? Como conseguir, oh céus, encostar a cabeça no travesseiro à noite e ainda se sentir o rei do pedaço? O pessoal já estava começando a comentar, a coisa estava ficando feia. De que adiantava construir seu nome no colégio por horas, meses, quiçá anos e, em meia hora, colocar tudo a perder por causa de um bando de novatos desajeitados que mal pronunciavam dez palavras por dia?

Eles se juntaram um dia. Confabularam, conversaram entre si. Após a reunião do Congresso, as lideranças se decidiram por uma medida provisória: cada dia um deles (eram três, os opinion leaders da classe) traria a bola. Só eles teriam esse privilégio. E assim, na condição de donos da pelota - detentores dos meios de produção, diria um certo escritor barbudo - sempre estariam entre os primeiros a serem escolhidos e não cairiam em descrédito tão escancarado diante da massa.

No caminho para a aula, na hora do almoço, ao passar pela Giovanni Gronchi então sem nenhum prédio, Norberto se punha a refletir como naquela meia hora diária ele se sentia bem e como nas cinco horas restantes de aula, não.

Passou a amar o futebol para sempre, com devoção. E até onde ficou sabendo, nenhum dos bullies virou volante do Palmeiras ou algo que o valha.