quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Kant e a velha mania de sair do tom

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É curioso enxergar como todos os que estão acima da metade da pirâmide social atingem uma fase de conforto na vida. "Pra quê me arriscar se meu futuro já está mais ou menos desenhado?", pensam eles. Ou melhor, pensamos, eu, tu, eles, a Regina Casé e aquela musiquinha do Gilberto Gil no filme homônimo. É comum, não há vergonha nisso. Há séculos, Immanuel Kant, do alto de sua desconfiança tipicamente germânica, inebriava-se na micareta da Oktoberfest e já alertava sobre a existência dos campos da maioridade e da minoridade. E não, meu caro telespectador de José Luiz Datena, ele não falava dos "de menor" e os "de maior", nem sobre o Comandante Hamilton pilotando o Águia Dourada feito um urubu atrás de crimes hediondos por São Paulo. É um tanto mais complexo que isso. Mas muito mais interessante. Vamos então a uma breve associação do que dizia o filósofo alemão com exemplos da vida contemporânea. Em outras palavras, eu vou te dar ibagens.



Comecemos pela distinção entre animais e homens. Cães e Bento XVI, por exemplo. O que os separa? Usando o sempre enriquecedor vocabulário do marketing, qual é o diferencial de mercado do Homo Sapiens em relação à concorrência? A resposta, claro, é sua consciência. É a capacidade de fazer sua vontade deliberar (e "ir") contra seu instinto, de colocar numa balança suas pulsões internas e as influências externas - frutos de sua observação, conhecimento e formação moral - e aí sim chegar a um veredito. É, afinal, o dom de não ser escravo do sexto sentido, como a carreira de M. Night Shyamalan até o presente momento. E aí se faz necessário um esclarecimento: ao contrário do que supõe o senso comum, desejo e vontade não são sinônimos. Em certas situações, inclusive, podem ser conceitos diametralmente opostos. "Só é livre quem faz o que não quer", diria Kant em um famoso microblog hoje em dia, ao resumir sua obra em menos de 140 caracteres.




Mas afinal de contas, livre de quê? De seus instintos. De seu desejo. Os animais não são capazes disso. Um cão é um cão, assim como um lance é um lance e um romance é um romance. Em 1231, nos feudos de Liechtenstein, um cachorro agia exatamente da mesma maneira que age um simpático poodlezinho de uma confortável mansão no Jardim Europa, em 2011. Não há quaisquer diferenças de comportamento dignas de nota entre os cachorros da Idade Média e os da era do BBB, e não há Darwin que prove o contrário. Os bichos nascem prontos. E os homens? Bem, um nobre da época se portava de maneira absolutamente distinta de um bem-nascido ator global que ataca de DJ atualmente. Ou pelo menos deveria, se quisesse distinguir-se de um animal.

Mas essa diferenciação não é tão fácil assim. Obedecer seus instintos e seu desejo é tentador. É cômodo, confortável e até certo ponto recompensador. Por outro lado, coloca o indivíduo na vala comum. Na média. O average guy. Just another face in the crowd. Enfim, escolha sua metáfora made in USA favorita. Mas é aí, no pântano da mediocridade, que emerge o conceito kantiano de minoridade. Não há desafios. Não há, em outras palavras, a fagulha da interrogação; apenas o gozo mundano de se levar a vida em uma eterna exclamação, como se o mundo não fosse feito de caos. Assim, anestesiados, tornamo-nos presas fáceis para quaisquer tipos de tiranos. E há de se estar atento, eles estão disfarçados com muitas fantasias e muitos têm a fala mansa e um jeito amigável. Abra uma revista semanal, assista a um intervalo comercial, alugue um blockbuster, frequente uma igreja, vá a uma cartomante, observe uma sessão no Plenário, compre um livro de auto-ajuda e constate você mesmo que o modo certo de se viver já foi programado, embora ninguém tenha lhe perguntado nada. Ora, que paradoxo: padronizaram o indivíduo!

Nós humanos somos então levados a esquecermo-nos que temos a faculdade de perguntarmo-nos, de deliberarmos com nossas consciências e, caso se faça necessário, agirmos contra nossos impulsos. Em meio a esse festival da 1ª pessoa do plural, cabe citar um exemplo simples, bem dramático e maniqueísta para ilustrar essa encruzilhada do livre pensar: se em 1954, Carlos Lacerda oferecesse a você, jornalista, um alto cargo na Tribuna da Imprensa e deixasse implícita a tarefa de não permitir que Getúlio Vargas governasse de maneira alguma, o que você faria? Recusaria por princípios morais, mesmo sabendo que uma oportunidade profissional dessas jamais bateria à sua porta novamente? Pois saiba que muitos aceitariam de olhos fechados, sem pestanejar. E sem nenhum encargo na consciência, é bom que se diga. Daí a origem da frase do jovem @kant no Twitter: "Só é #livre quem tem a #coragem de fazer o que não quer!!! #prontofalei". Apliquemos isso a cada microexemplo do cotidiano e entendamos, pois, como esse dilema se faz presente até hoje.




A verdadeira consciência, no entanto, é algo cada vez mais difícil de se atingir. A começar pela óbvia subjetividade do conceito de "verdade", agravada pelo bombardeio de informações e correntes ideológicas a que o Homem Moderno está submetido. "Afinal, Suzana Vieira está mesmo grávida?", "Lula vai posar nu em 2011?", "Julian Assange vai ser deportado para Marte?", "Mesmo com essa fama de vampiro, José Serra vai de fato participar da campanha de doação de sangue?", "Manoel Carlos é mesmo um charlatão da escrita?". São muitas as perguntas na cabeça de todos, a cada segundo, e com diferentes graus de relevância para cada um. Fazem-se necessários filtros. Hoje, ao contrário de outrora, tem maiores chances de ser alienado quem está exposto a tudo. Quem se propõe a saber um pouco de tudo, mas no fim nada absorve.



Um conhecido rapper da periferia paulistana diria que há todo um sistema montado para dar amparo moral e relativizar o impacto de certas decisões que, se analisadas friamente à luz da razão, não fazem o menor sentido, tanto sob a ótica individual quanto - e principalmente - a coletiva. Voltando a pensar na pirâmide social, é de interesse de muitos (mas definitivamente não de todos) que as pessoas optem sempre pelo caminho mais seguro, que não transgridam nunca a tal linha do bom senso. É bacana que, como pensavam os gregos há 2500 anos, o mundo seja ordenado e harmonioso. Que pela simples contemplação do Homem, as respostas surjam. Pena que na realidade as coisas não sejam assim. A força motriz do universo é o caos e, ao adotar uma postura tão passiva diante desse feroz macroambiente, o sujeito moderno dá o primeiro e mais importante passo para ser manipulado. Como diria Lourenço Mutarelli, "la vida es dura, amigo". Para atingir a maioridade, hay que preguntarla. E animais não fazem perguntas, só obedecem.

(texto parcialmente inspirado em aulas do mestre Clovis de Barros)

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